[Animais Selvagens]

“Você costumava me cativar com sua luz ressonante. Agora, estou presa pela vida que você deixou para trás. Seu rosto assombra meus sonhos outrora agradáveis. Sua voz afugentou toda a sanidade em mim. Essas feridas parecem não cicatrizar, essa dor é muito real. Há muito que o tempo não pode apagar.”

Ouvindo umas músicas antigas aqui, lembro da sensação, lembro da luz do sol atravessando a cortina vermelha da janela. Estendia meu braço em direção da luz e observava tudo se cobrir lentamente do tom avermelhado. Lembro-me também do cheiro e movimento das coisas. Lembro-me de tudo, porém agora não sinto. Vozes vêm e vão, não consigo correspondê-las. Quando dei conta, já passaram mais de dez anos. Mais de dez anos desde o dia que vi o amanhecer pela janela. Mas não falo de um único dia, me refiro a um conjunto de situações e emoções que agora são somente sonho. Digo sonho pois memória parece mais um recorte de jornal, e jornal se joga fora.

Mais para além da minha apatia hoje, duma criatura que virou jornal, tenho pensado e desejado bastante retroceder num animal. Quando criança passei um tempo com a ideia fixa de possuir um cavalo. Na época, falava-se muito do corcel negro e aquilo me deslumbrava, na televisão mostrava o quão era forte e rápido corria. Domar o corcel não era fácil, diziam na reportagem; como suponho que domar cavalos em geral não seja. Este era o fascínio: um animal forte, rápido e indomável. Não demorou muito para desvendar que minha ideia era ser um. Cortar laços e cordas e simplesmente “ser”. Finalmente parar de tentar me encaixar num mundo do qual só deixa cicatrizes pelo verbo falho. É um pensamento simplório e, de fato, primitivo, contudo tornou-se tão recorrente que é difícil resistir o anseio de poder vagar sem rumo e me deixar levar apenas por instintos.

Outrora um cavalo, para hoje um lobo. Para amanhã, ainda não sei. Ainda.

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12 de março de 2022.

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