Nas Runas do Sol

Eu tenho a memória pesada, testa de elefante. Trago todas as histórias por dentro e por fora, por isso todos correm com medo da derrota. A vida já me engoliu e cuspiu tantas vezes que hoje a tábula é rasa. Dante apontou prum mar de sangue fervente, canoas e barcos cheios adentravam desbravando toda a violência. Um bicho mecânico ergueu-se daquele sangue; meu sangue, teu sangue, nosso sangue. Triturou tudo como máquina, voltamos à margem.

Com o dedo na minha cara, o bicho disse: “faça tudo de novo e mais uma vez, do jeito que eu disse, do jeito que eu quero!”

Meu fracasso é só meu, então, é o meu querido fracasso. Encontrei um momento de ternura e amparo em algo somente meu, profundamente enraizado. Depois o bicho mecânico gargalhou e disse que o fracasso foi um presente dado. Só sentei em silêncio pensando o porquê de tanta servidão, então? Queria poder perguntar mais coisas, mas lá vem a vida devorar tudo de novo. Essa luta vai ter sangue que vai molhar da cabeça aos pés, essa luta vai abalar a confiança de seus fiéis.

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[O Gato Preto Cego]

Estou sonhando acordada ao mesmo tempo que passo por este cenário real — e, sim, sinto meu corpo estilhaçar por entre os quadros. Pois a paixão de viver padece na falta dum ombro para escorar a cabeça, mas o que fazer quando se é doente e enxerga coisas que ninguém mais vê? Ninguém me vê também. Muitos anos atrás eu quis pintar em todos os muros da cidade um trecho de Eugenio Montejo, que dizia algo como “a terra girou para nos unir neste sonho”.

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She Couldn’t, Linkin Park e a vida

Tudo bem, vou respirar fundo, relaxar os ombros e olhar para cima enquanto tudo desmorona. Ninguém acima está vindo me salvar, pois não há alguém. Nunca houve. O que resta é afundar nessa areia movediça, deixar a sombra tomar o controle. Está tudo bem. Saio de casa, ponho um sorriso largo no rosto e finjo que o chão abaixo de meus pés não está tremendo.

É apenas a vida, a besta indomável de todas as circunstâncias. E eu posso sentir o medo. Eu posso sentir o medo abrir como uma janela. De todos os caminhos que tracei e percorri, acabei escolhendo a estrada mais escura. Escolhi esta estrada por querer tocar no tom mais escuro da escuridão, então o fiz. Não sei se era paz ou abismo, mas havia um sagrado e profundo silêncio.

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Goodbye, 2NE1 e a ausência

Há um bom tempo venho pensando num homem de aparência misteriosa, vejo-o de longe no final de um corredor. O homem parece estar de terno, tem um relógio dourado de bolso no qual checa as horas de quando em quando. Paciente, ele espera no fim do tal corredor, que dá saída para um grande e belo jardim.

Um sentimento indescritível me tomou enquanto eu olhava o declive do sol, da tarde, das luzes. Então deixei a noite me engolir. Em seguida, toda a angústia, todo o desespero e todo o pesar nos ombros desapareceram. Somente as lágrimas que escorriam pelo meu rosto eram capazes de me aquecer entre os cortes do retraimento.

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The Cold, Exitmusic

Imaginem isto: vários corredores brancos, alguns vazios apenas com a penumbra de companhia, e o cheiro de alvejante vindo do chão. Em cada canto, uma lixeira. Você senta numa cadeira desconfortável que lhe ofereceram, olha ao redor, mas só consegue fixar o cenário para fora da janela; tudo próximo fica em segundo plano. Um momento como esse é desolador, claustrofóbico e cruel. Ainda assim, você entrelaça os dedos e põe os braços sobre as pernas, entretanto não consegue conceber uma única palavra ou se mover de jeito algum.

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White Horse, Shao Hao e distância

Numa tarde ordinária sinto um calor preencher meu peito, aquela sensação boa quando as pessoas recorrem à definição de “paz de espírito”, bem, comigo é o oposto. Essa sensação distinta sempre fora o prelúdio de algum massacre iminente, nunca sei o que é, mas meu corpo parece tentar me ajudar a vestir algum tipo de armadura para aguentar uma violência da qual não serei capaz de escapar. É inútil pedir por ajuda pois minha voz está fora do alcance dos demais, das outras milhares de vozes que pedem o mesmo. Estamos sozinhos quando não deveríamos e todas a minhas tentativas de contato falharam. Mesmo perdidos nesse vácuo turvo e sem sentido, ainda gritamos para sermos encontrados e compreendidos dado que nós mesmos nos colocamos em tal posição de isolamento inalcançável e impenetrável.

Seguimos então sem rumo até avistar uma muralha de proporções colossais e arquitetura engenhosa, ela fora feita para subir. Na minha solitária escalada começo a questionar se vale tanto a pena chegar ao topo, não existe nenhuma grande fortuna a me esperar ou nenhum prêmio de bravura a ser recebido. Estou cansada enquanto lembro daquela sensação no peito e agora compreendo: “você se preparou para a queda?” – esta é a única voz que ecoa em minha cabeça neste exato momento. Tento racionalizar toda a situação, se é que é possível cogitar razão em tal cenário improvável.

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Gigaton, Pearl Jam

Hoje a manhã surgiu rosada pela janela, um tanto incomum aos habituais raios de sol alaranjados depois de tantas madrugadas. Quando criança, imaginava um castelo sobre as nuvens, até planejei pegar um de seus tijolos assim que eu tivesse a oportunidade de viajar num avião. É de se pensar. Pois, com o passar dos anos, a água em seu estado gasoso dissipara a imaginação duma criança para uma realidade acinzentada e concreta.

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